Opinião

A retomada sustentável passa pelo gás natural

Embora exista uma profunda inércia nas estruturas, que contrasta com a velocidade das mudanças na política internacional, a lenta transformação da matriz energética continuará a responder a três desafios: evitar o aquecimento planetário, garantir o abastecimento de energia e universalizar seu acesso

Por Luís Eduardo Duque Dutra

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A velocidade importa, uma vez que há urgência em atender os três objetivos de forma simultânea e, óbvio, articuladamente. Quanto às fontes, o gás natural manterá o destaque por duas ou três décadas, apostam petroleiras, produtores de eletricidade, grandes consumidores e países com importância na geopolítica internacional.

Não existe solução imediata, única, ou mesmo de curto prazo, para vencer o triplo desafio acima mencionado. Para agravar, além da trágica perda de milhões de vidas, a pandemia paralisou a economia ao fechar as cidades e confinar seus habitantes. O isolamento compulsório, o sentimento de impotência e a escancarada vulnerabilidade dos mais pobres fazem refletir sobre hábitos e mudança de condutas diante de rupturas radicais e inesperadas. Duas torres gêmeas derrubadas em 2001, o crash financeiro em 2008, a falta de crescimento posterior e a crise sanitária em andamento não correspondem, em nada, às expectativas geradas pelo novo milênio. Some-se, então, a questão ambiental, insolúvel até aqui. Duas décadas depois da virada, o futuro imediato nunca esteve tão incerto.

O ano de 2020, em particular, ficará registrado entre os piores depois da Revolução Industrial. Fora as duas guerras mundiais e a crise de 1929, a queda do PIB mundial é a maior da história: estimada em em 6% neste ano (World Bank Data). Ela será duas vezes maior que a queda observada em 2009 e pelo menos quatro vezes maior que a queda em 1981, que se seguiu à crise da dívida e ao segundo choque do petróleo. Década após década, depois de sessenta anos, o declínio do crescimento, a instabilidade financeira e o distanciamento entre ricos e pobres questionam sobre a estagnação do capitalismo que os clássicos, a primeira escola do pensamento econômico inglês, levantava como sua tendência final.

Por definição, toda a mudança estrutural é lenta, trata-se de um movimento gradual, um avanço incremental, até que a conjunção de fatores a acelera, ela se torna incontornável e transforma a realidade. Neste momento, a crise assume um papel-chave: marca o ponto de não retorno, o fim de uma era. O crash de 2008 sinalizou o esgotamento do impulso, criado nos anos 1980, pelas eleições de Reagan e Tatcher, pelo fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, pela chegada do neoliberalismo e da globalização dos negócios. A pandemia desfez qualquer possibilidade de volta ao passado. O completo despreparo frente à crise sanitária e as falhas das políticas públicas não se limitaram aos países menos desenvolvidos e ressaltaram o inalienável papel do Estado.

Além disso, a diminuição da produção, o fechamento do comércio e as restrições ao deslocamento contribuíram para uma queda das emissões de gases de efeito estufa jamais vista. Em 2020, a retração em torno de 6% do PIB mundial evitará a emissão de 2,6 Gton de dióxido de carbono segundo as estimativas da Agência Internacional de Energia, o que representa 8% menos que no ano anterior. Oito vezes maior que a redução registrada em 2009, apenas 1%, após o crash de Nova Iorque. Também informa sobre o pouco tempo pela frente, uma vez que será necessário manter este nível de queda nos próximos dez anos para que a temperatura não aumente em 1,5º C em meados do século, comparada à temperatura do planeta antes da Revolução industrial (IPCC, 2018 Special Report).

A transformação da matriz energética não atende a urgência que requer a adequação às mudanças climáticas. Alterar a estrutura de oferta e o comportamento da demanda não pode ser feito de imediato, ou a curto termo. A transição gera incontáveis custos irrecuperáveis, necessita de ganhos de escala e avanços tecnológicos imensos, além da completa reforma dos espaços urbanos e meios de locomoção. A cooperação internacional, por mais distante que hoje esteja, será indispensável e nada será obtido sem financiamento multilateral. Em 2020, somada à dissonância entre as potências e ao renascimento protecionista, a inércia revelada pela matriz energética é flagrante e preocupante.

Principal responsável pelas emissões, o consumo mundial de energia cresce a um ritmo insustentável. E, até aqui, isso ocorreu apesar da forte desaceleração do crescimento entre a década de 1960 e esta que vem de terminar. Ocorreu também apesar do ganho de eficiência dos processos e da formação da riqueza calcada cada vez mais no imaterial, nos serviços e na propriedade intelectual. Nem os repetidos acordos em torno do clima conseguiram reverter a trajetória. Nos últimos vinte anos, o consumo de energia primária do mundo cresceu em nada menos que 50%.

A característica estrutural das mudanças na matriz energética se revela quando ela é decomposta pelas fontes. Nas últimas décadas, carvão, óleo e gás – as fontes fósseis e exauríveis – perderam importância, mas é notável que a queda tenha sido tão lenta, a ponto de ainda serem largamente majoritários. Em 1965, os três respondiam por 94% do consumo de energia primária e, em 2019, ainda eram responsáveis por nada menos que 84% do total (BP Statistical Review). Outro sinal preocupante, entre 2019 e 2000, a taxa de incremento do consumo do carvão (3,6% ao ano) foi duas vezes superior à taxa observada entre 2000 e 1980 (1,6% ao ano). Neste ritmo, o uso do carvão destoa inteiramente dos objetivos da transição almejada e não surpreende o aumento das emissões de dióxido de carbono.

A despeito da inércia das estruturas econômicas, cinquenta a sessenta anos são suficientes para identificar algumas tendências, que devem ser inseridas num quadro mais amplo e, no qual, ao longo do tempo, para dar conta do consumo, as fontes de energia foram se adicionando, uma as outras, e não se substituindo. Ocorreu, na verdade, um processo cumulativo, de empilhamento, de somas sucessivas: lenha, carvão vegetal, carvão mineral, petróleo, hidroeletricidade, eletronuclear, gás natural... O resultado é a incessante diversificação da matriz energética. Assim, a primeira grande tendência é o ganho de escopo, ou de envergadura em termos de fontes e, nas próximas décadas, nada indica que ela será revertida.

Contudo, também é possível detectar que as fontes hídrica e nuclear já encontraram seus respectivos limites. Depois do início do século XX, a construção de grandes barragens para geração hidroelétrica experimentou um sustentado crescimento que, ao mesmo tempo, diversificava a matriz e trazia expressivos ganhos, entre eles, maior eficiência e a regularização do regime dos rios. Entretanto, os números da BP Statistical Review indicam que o teto de sua participação relativa foi atingindo faz tempo. Entre 1965 e 2019, a hidroeletricidade variou em torno de 6% a 7% do consumo de energia primária no mundo. No pós-guerra, à fonte hídrica, veio a se adicionar a geração nuclear. Ela também encontrou seu limite após um incremento muito rápido até 2000. Nos últimos vinte anos, países como a Alemanha, o Japão e outros colocaram de lado a alternativa e a participação do nuclear caiu de 6,5% para 4,3% do total.

Após a hidroeletricidade e o nuclear, a diversificação da matriz prosseguiu com o gás natural e, recentemente, com as energias renováveis. Além dos avanços tecnológicos e da proteção ambiental, as motivações incluem a segurança do abastecimento e a geração de renda no local aonde os recursos são abundantes. Como em experiências anteriores, a expansão contou com a articulação entre estado, grandes empresas e setor financeiro. A complexidade do sistema aumentou consideravelmente na medida em que as estruturas passaram a integrar novas e diversificadas fontes, muitas delas descentralizadas e as que mais crescem intermitentes (como a fotovoltaica e a eólica). Uma gestão inteligente das redes e das distintas cadeias produtivas caracteriza o planejamento energético atual e ela será indispensável para acelerar a transição.

Não falta espaço para o gás natural e, em termos de emissões evitadas diante dos demais combustíveis fósseis, o ganho será notável. Em países onde as demandas por calefação, calor industrial e geração elétrica são importantes e o carvão permanece como combustível preferencial, a fonte responderá pela maior parte da substituição. Neles, enquanto a pandemia perdurar e a demanda ficar retraída, serão as térmicas obsoletas e mais poluidoras (abastecidas a carvão) aquelas abandonadas em primeiro lugar. Além disso, a retomada se beneficiará das profundas mudanças ocorridas nos últimos vinte anos: o gás não convencional norte-americano, a massificação do transporte por navios-metaneiros e os novos contratos, que podem ser pontuais, flexíveis e não indexados ao barril de petróleo. Quase uma revolução na indústria de energia, ou o suficiente para reformar o comércio do gás natural por completo.

Nenhuma fonte é portadora da solução para a transição energética, mas, entre todas, nos últimos vinte anos, o gás natural foi quem assegurou, por um lado, o grosso da substituição do carvão e, por outro, o incremento na base para a rápida penetração da energia eólica e fotovoltaica. A recente expansão decorreu da abertura de novas fronteiras (entre elas o não convencional e o offshore profundo), da multiplicação dos países exportadores e da mobilidade que o GNL trouxe à indústria. O custo de fazer negócio (de comprar e vender), de se ir ao mercado, denominado custo de transação, tende a cair vertiginosamente, acompanhando a queda recente dos preços – argumento principal na competição interenergética. Diante da urgência ambiental, da tragédia da pandemia e da inércia das estruturas, nenhuma fonte reúne tantas condições para servir de ponte para uma economia menos intensiva em carbono e, não por acaso, ainda se trata de uma fonte fóssil. De fato, a transição mal começou.

Luís Eduardo Duque Dutra é professor da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Recentemente publicou o livro Capital Petróleo: A Saga da Indústria entre Guerras, Crises e Ciclos pela Editora Garamond.

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