Opinião

FRAZÃO, WINTER E BECKER: hipoteca naval

Posicionamento tem grande potencial de reduzir riscos legais nos financiamentos de embarcações

Por Patrícia Winter, Daniel Becker e Marcelo Frazão

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Em recente acórdão, publicado no dia 01 de fevereiro de 2018, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, por unanimidade, a validade de uma hipoteca naval constituída de acordo com as leis da Libéria sobre a embarcação OSX-3, uma unidade flutuante de produção e armazenamento de petróleo e gás natural do tipo FPSO. Esta foi a primeira oportunidade em que o STJ enfrentou o tema da validade de hipotecas navais estrangeiras no Brasil com profundidade.

Atualmente, há cerca de 42 embarcações estrangeiras do tipo FPSO no país[1] e a vasta maioria possui hipoteca naval. A garantia normalmente é registrada em favor de bancos e instituições financeiras, que financiam a construção ou adaptação destas embarcações. O financiamento de apenas um FPSO pode alcançar centenas de milhões de dólares, numa estruturação que tipicamente envolve um grupo de bancos e instituições financeiras.

Significativa parcela da produção offshore de petróleo e gás natural no país é hoje feita por FPSOs e o Brasil representa o maior mercado mundial para este tipo de embarcação. Dentre as principais companhias operadoras de FPSO no Brasil, estão SBM, Modec, BW Offshore e Teekay.

A recente decisão do STJ resultou de uma disputa iniciada em 2014 pelo Banco BTG contra a proprietária da embarcação, a OSX 3 Leasing. A disputa foi proposta no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e resultou na penhora do FPSO para garantir o cumprimento da cobrança judicial. Na ação, o BTG buscava o ressarcimento de um desembolso no valor aproximado de 27 milhões de dólares, realizado pelo banco para satisfazer um descumprimento contratual da OSX 3 Leasing no contrato de construção da embarcação OSX-3. O BTG figurava como garantidor da proprietária da embarcação em tal contrato.

Em 2015, a companhia Nordic Trustee requereu seu ingresso na ação, na qualidade de representante dos financiadores da construção do FPSO. A Nordic Trustee alegou que teria direito de preferência na arrematação da embarcação pelo fato de ela estar gravada por hipoteca em seu favor, a qual havia sido constituída em garantia ao pagamento do empréstimo que a Nordic Trustee concedeu à OSX 3 Leasing para custear a aquisição da embarcação OSX-3.

Dentre os argumentos trazidos pelo BTG, alegou-se que não haveria no Brasil previsão legal para reconhecer os efeitos extraterritoriais de hipoteca marítima constituída no estrangeiro, exceto para aquelas constituídas em países signatários da Convenção de Direito Internacional Privado de Havana de 1928 (Código de Bustamante) e da Convenção de Bruxelas para Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimas de 1926 (Convenção de Bruxelas), ambas incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro pelos Decretos nos 18.871/1929 e 351/1935, respectivamente. Contudo, neste rol de países signatários, não estaria incluída a República da Libéria.

Outros argumentos trazidos pelo BTG incluem a falta de registro da hipoteca perante o Tribunal Marítimo Brasileiro; a suposta ilegitimidade da bandeira liberiana, tratando-se de bandeira de conveniência; e que a embarcação OSX 3 teria sido adquirida para um projeto de exploração de petróleo, estando, desde sempre, destinada a ficar estacionada em águas brasileiras por um longo período de tempo.

Em primeira e segunda instâncias, as decisões foram favoráveis ao BTG. Em sede de recurso, interposto pela Nordic Trustee, o STJ reverteu a decisão.

No nosso entendimento, a decisão da Corte Superior foi correta e consistente com as práticas internacionais do mercado de navegação, ao reconhecer os efeitos extraterritoriais de hipotecas marítimas estrangeiras, independentemente do país de registro da hipoteca ser ou não signatário do Código de Bustamante ou da Convenção de Bruxelas.

Dentre as conclusões contidas no voto vencedor do Sr. Ministro relator Luis Felipe Salomão, destacamos ainda a invocação dos arts. 91, 92 e 94 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar  (CNUDM) – cuja aplicabilidade não se questiona, uma vez que tanto Brasil, quanto Libéria aderiram a ela. Tais dispositivos preveem a soberania dos Estados para estabelecer requisitos à atribuição de nacionalidade a embarcações, e para exercer jurisdição e controle em questões administrativas, técnicas e sociais sobre embarcações que arvorem sua bandeira.

O voto vencedor também admitiu a aplicabilidade do Código de Bustamante e da Convenção de Bruxelas ao caso, com fundamento em dispositivos de tais tratados que preveem a validade de garantias reais em jurisdições de países não signatários.

Também destaca-se do voto vencedor o entendimento de que embarcações do tipo FPSO são efetivamente embarcações, o que parece sinalizar um posicionamento mais sólido por parte do STJ para uma antiga discussão, com potenciais reflexos tributários, sobre a natureza jurídica das unidades flutuantes que permanecem estacionadas por longos períodos de tempo.

Ainda que o acórdão gere efeitos tão somente entre os litigantes, trata-se de um importante precedente judicial sobre o reconhecimento de hipotecas navais estrangeiras, que deve servir para orientar os demais tribunais brasileiros, especialmente em razão da nova disciplina do Código de Processo Civil de 2015 que estabelece o dever de integridade e coerência nas decisões, valorizando sobremaneira a força dos precedentes judiciais.

O posicionamento do STJ tem grande potencial de reduzir riscos legais nos financiamentos de embarcações que venham a operar no Brasil, podendo diminuir os custos de financiamento e atrair mais investimentos, emprego e renda, especialmente na indústria marítima offshore. É de se celebrar.

*Os autores são associados do escritório Tauil & Chequer Advogados.

Marcelo Frazão é advogado sênior e especialista em direito marítimo, possuindo ampla experiência em projetos offshore e envolvendo operação e financiamento de FPSO.

Daniel Becker é advogado de contencioso e arbitragem, e diretor do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).

Patricia Winter é advogada especializada em energia e direito marítimo, com experiência em projetos offshore e regulação de petróleo e gás.

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